30 outubro 2020

BINÓCULO DA VIDA - O António

 António guarda-fiscal, era um homem pujante e muito gracioso. 

Os filhos e sobrinhos ficavam fascinados com as histórias que lhes contava. Gostavam muito desses dias em que o sonho se misturava com a realidade e o encanto. Esta atenção e interacção eram muito importantes e levavam no pensamento a lembrança que não esqueciam. As relações interpessoais eram muito sólidas e respeitáveis! 

Um dia o António fez um desafio às crianças!

- Querem ir à pesca e divertirem-se um pouco perto da água? 

Ficaram muito entusiasmados que não paravam de falar.

 - Que bom! – Que bom! Eu quero!

Replicava cada um! 

Essa noite quase não dormiram com a emoção e o desejo de ver a noite passar! 

Levaram uma merenda que as mães lhes aviaram e lá foram ainda o sol não despontava. 

O percurso era longo, mas adivinhava-se que os momentos iriam ser muito agradáveis. No caminho paravam por aqui e por ali quando viam uma borboleta, uma flor ou outro bicharoco que lhe despertava atenção. Ora corriam quando viam um passarinho tentando apanhá-lo, ora ficavam para trás entusiasmados com o rebanho de ovelhas algumas com seus filhos acabados de nascer.  

 O verde dos olivais e o pequeno fruto cheios de cachos que despontavam entre as folhas fazia-lhe despertar a curiosidade fazendo perguntas!

 - Quando é que é a altura de colher a azeitona?

 - Só no inverno disse o tio.

 - Pois é, disse um dos sobrinhos, a tia Carolina costuma ir à azeitona. - Vão grandes ranchos de pessoas para os olivais e levam laraus, varas para bater nos ramos e sacas para ensacar a azeitona.

- Primeiro quando a azeitona está mais rija, uma é pisada outra retalhada põe-se em água e depois é temperada para comer logo, e ainda fazem a conserva para o ano inteiro para que não falte conduto e a outra vai para o lagar.

 A azeitona que sai fora dos laraus é aproveitada por isso há muita gente que vai ao rabisco e leva para o lagar para terem azeite durante um tempo. Nada se desperdiça. A conversa estava bem animada!

O tio deixava-os disfrutar a natureza e até lhe contava alguns episódios que teriam acontecido nos locais por onde passavam ou mitos que os mais velhos já lhe teriam transmitido.

Faziam imensas perguntas, algumas deixavam o António embaraçado, sorrindo discretamente entre dentes. Sempre tinha uma maneira interessante de dar a volta à questão. 

Ainda não tinham chegado e o início do dia já estava a ser muito divertido!

Ficaram encantados quando viram o Guadiana e correram para perto da água. Viam bem perto cardumes de peixes pequenos o que os fez meter os pés na água tentado apanhar um. Com o camaroeiro improvisado em casa lá apanhavam um ou outro que metiam num balde com água, pois queriam ter os peixinhos vivos. Mergulharam algumas vezes e salpicavam-se o que lhes dava liberdade e divertimento. Ao redor viam os juncos o buinho, atabuas, hortelã da ribeira, seixos, alabaças, cheiros que a natureza oferece com graciosidade.

- Sabem para que serve o buinho?

- Sei, dizia um! O ti Manel costuma ir ao buinho depois deixa-o secar e põe fundos nas cadeiras.

- Já vi! Tem muita habilidade e ficam muito bonitas e resistentes!

- Quem fez as nossas cadeiras da cozinha, pai?

- Foi o ti Joaquim, se tu quiseres um dia podes apreender!

O António disse-lhe que olhassem para o outro lado do rio. 

Sabem, além fica Espanha. As pessoas daqui para passar para lá, têm que se deslocar até à fronteira em Badajoz e além disso têm que ter uma autorização, o passaporte! É outro país!

Depois de muita brincadeira e já um pouco queimados do sol, comeram e dormiram um pouco. 

Quando acordavam estavam esfomeados, e o António com um sorriso disse-lhe: 

- Este ar fez-lhe apetite! Partiu um naco de pão e do que levava… chouriço, queijo, a córnea com azeitonas e perguntou a cada um o que queriam comer com o pão. Tinham também um barril de barro com água fresquinha.

- (O chouriço era o produto proveniente da matança do porco, dos migos da carne e do fumeiro para o conduto anual. Também havia a salgadeira para conservar o toucinho ou carne e alguma era frita em banha temperada com pimentão moído e guardada em potes de barro para comer em ocasiões especiais, a banha servia para barrar o pão ou cozinhados e o toucinho era o presunto do dia). – (O queijo era feito todos os dias do leite das vacas do tio Manel e da tia Maria Peças)

O Sol já ia alto e não podiam ficar mais tempo, tinham o caminho para fazer ainda e já iam chegar ao pôr-do-sol.

Apesar disso nenhum tinha vontade de sair dali. Porque não dormir também? Mas não era possível! Talvez para uma próxima vez. 

- Quando voltarmos novamente vamos trazer a família, pedimos ao tio “Manel” o carro e varais e a mula e podemos estar mais tempo, e depois cozinhamos aqui uma sopa de peixe do rio e vai ser um dia em cheio vão ver….

- Estou ansioso! Dizia um!

- Pode ser já no domingo? Dizia outro!

- Vamos ver…. Dizia o António! Temos que ter paciência!

Maria Antonieta Matos


Binóculo da vida - A CHEGADA DO CIRCO

Logo pela manhã havia grande chinfrim pela rua, a música entoava em toda a vila e apregoava-se a chegada do circo. As crianças saiam à rua e corriam atrás de palhaços em cima de andarilhos - grandes pernas de madeira - com um equilíbrio espantoso, informando as novidades que podiam ver. Saltimbancos, equilibristas, palhaços, magia e muitas surpresas. 

Assista ao maior espectáculo de circo com os maiores artistas que já viu. Diziam! Venham ao circo Mariano! Às 4 da tarde e às 10 horas da noite!

O José ficou rodeado dos netos para que os deixasse ir ao circo, falavam todos ao mesmo tempo que o avô já se estava a sentir sufocado. 

Acalmem-se…! Tirem-se de cima de mim, dizia o José!

Temos que pensar muito bem! 

Não era todos os dias que tinham esta oportunidade de poder ver um espectáculo daqueles! 

O avô viu o entusiasmo tão grande dos gaiatos e até ele sentia esse desejo e por isso resolveu com os pais irem ao circo. Os pais e os avós preparam a criançada e até eles com as roupas graves (roupas que só se vestiam na altura de acontecimentos importantes, festas etc.) Porque a outra roupa para alguns era muito pouca e a que vestiam o dia-a-dia muitas vezes era lavar e vestir. 

Iam eufóricos e ansiosos! Como seria?   

 No Largo do Arquiz havia uma grande movimentação. A passagem de cada pessoa levantava poeira deixando os sapados que tinham sido engraxados brancos do pó, barracas de algodão doce, carroceis de cavalinhos e carros, ninguém se fazia ouvir, mas a alegria essa, não escapava aos olhos dos mais atentos. Os sorrisos as gargalhadas tudo era muito saudável. O coração batia com mais força e a ânsia daquele dia diferente dava para nunca mais esquecer. 

Depois chegou a hora do espectáculo.

Dirigiram-se para a bilheteira ali pareciam estar quase todos os habitantes da vila. Uma grande fila! Os artistas esperavam à porta para lhes indicar o lugar.

Depois de sentados e, de uma pequena espera, fez-se grande silêncio. O apresentador começou a apresentar os artistas que, com o seu peculiar jeito, deixou todos suspensos. Depois cada número que se seguia e se via era como feitiço ou de grande admiração. Com os trapezistas, muitos tapavam os olhos com medo que caíssem. Veio depois o mágico com a sua partenaire fez desaparecer e aparecer flores, pombas, coelhos, lenços coloridos, moedas e olhou para um dos netos do José, aproximou e da orelha e tirou uma moeda, depois do nariz, o Luís parecia estar assustado. As pessoas abriam a boca toda soltando um grande Ah! De enorme espanto. 

Cá fora queriam andar nos carroceis, comer algodão doce, enfim foi o culminar de sensações que levaram na memória e não iam esquecer nunca.


                                                                  Fotos da internet

28 outubro 2020

BINÓCULO DA VIDA

Num ambiente entre o deitar cedo e cedo erguer, a lavoura assentada no rasgar da terra, abrir regos paralelos em toda a extensão do terreno, que as mulas arrancam presas à pá da charrua, ligeiramente inclinadas à terra com a ajuda do homem que delineava a profundidade do rego, conforme a rijeza da crosta, existem muitas profissões que ladeiam o espaço rural e arquitetónico 

O Presidente do Município, a professora, o pároco e o médico são pessoas de grande prestígio, respeitabilidade e poder. Seguem-se os donos de terras, lavradores, proprietários, seareiros, negociantes e para os servirem governantas, criados, ganhões, moirais, carreiros, pastores.

foto internet 

Fotos da internet

Formigam aqui e ali ferreiros, latoeiros, sapateiros, costureiras, alfaiates, barbeiros, bordadeiras e lavadeiras povoando as margens dos rios e enchendo os arbustos de roupa a corar ao sol, aguadeiros que vendem água ao copo ou ao cântaro pelas ruas ou festas, porqueiros colorindo o campo e vendendo sonhos no silêncio ímpar de emoções, que da natureza descobre e o carrega de saber, amola-tesoura, engraxador, carvoeiro, tabernas, boticário, carteiro, telefonistas, cesteiro, cadeireiros, limpa-chaminés, vendedores ambulantes.



Foto da Internet

Malteses, pés descalços, analfabetos, crianças e mulheres tímidas, enfiadas no segredo dos seus pensamentos. Viúvas que se escondem por entre xailes e lenços negros e vivem rodeadas de preconceitos, de medos e crendices. A guerra, as epidemias, que tornam a humanidade frágil e resiliente, onde quase tudo precisa renascer. 

 Foto da internet
A enxada, as grades, as sementeiras, a espiga doirada, a ceifa, as eiras, almiaras, os palheiros, os trilhos, os carros de mão, a forquilha, a monda, a debulha, as choças, os ranchos de homens e mulheres, o grão o feijão a batata, a hortaliça, o calor tórrido, os fogos, o gado, árvores de fruto predominando os pomares, olivais;
os lagares; azeite, azeitona, a farinha, o pão caseiro, …Moinhos de água, azenhas. Moleiros. Picotas, noras. Sobreiros, a cortiça, a lande, os porcos, ou os temporais, as fontes, os desastres, as cheias, os ribeiros que transbordam as margens num murmúrio suave e certo, o peixe do rio, o coxear das rãs, o assobio das cobras, o chilrear dos pássaros, o matraquear das cegonhas, os carros de burros com os taipais, os carros de varais, os churriões puxados por mulas ou cavalos com estampidos que interrompem o silêncio dos Deuses; as veredas, as estradas de terra batida, as fontes rodeadas de mulheres enchendo os cântaros, jogar ao eixo, à semana, o jogo da china, os contos, a poesia, o cante, os bailes, os arraiais, o sentar à porta, o alicate, o canudo, as panelas de barro ou de ferro, o lume de chão, o fogão a petróleo e a lenha, a almotolia, o espevitador para desentupir o bico do fogão a petróleo, os coxos em cortiça para beber água, os moxos feitos dos troncos das árvores servindo de assento, o gado e a lembrança dum passado longínquo, vincado pelas muralhas do castelo medieval. 

CONTO Antigamente na taberna



Foto da Internet.

Na taberna sombria, forrada de pipas, o cheiro de vinho e aguardente, e o estalido dos berlindes nas garrafas dos pirolitos, estava sempre cheia de fregueses assíduos. 

  Homens que passavam horas de pé ou sentados à mesa, em bancos de madeira, depois do trabalho ou em dias de descanso, com o copo do vinho em punho, os beiços e as mãos engorduradas do pão com toucinho, linguiça, dos torremos e das azeitonas, petiscos comuns, neste ambiente. 

 Na mão direita a navalha que cortava cada naco de pão condutando o petisco, que pegava na mão esquerda. 

O taberneiro era apelidado de “Lica” o seu nome poucos sabiam. Muitos indivíduos nasciam e morriam apenas conhecidos pelas alcunhas que muitas vezes continuavam por gerações.

- Ó Lica enche aí mais um copo, dizia um!

- Mais uma rodada - dizia outro!

 O Joaquim entrava naquele momento e pedia-lhe que enchesse o garrafão de vinho, que trazia na mão. Um garrafão de vidro muito bem encanastrado, que depois enrolhou com grande pressão com a rolha de cortiça.

  O ti Zé pedia a garrafa da água-ardente para matar o bicho logo pela manhã e que para a noite servia de um bom comprimido. 

- É remédio santo dizia -facilita a digestão e aquece a alma.

O Lica não tinha mãos a medir.

 Num alguidar com água que dava para quase todo o dia, mal enxaguava os copos que muitas vezes ainda mostravam o assento no fundo ou o desenho da boca do vinho tinto.

 Aqui afogavam as mágoas, jogavam às cartas, brigavam, contavam histórias, criticavam as vidas, cantavam e versavam muitas vezes trocando a perna e cambaleando de bêbados.

 Havia homens que ficavam colados ao balcão o dia todo. Desleixavam-se e desinteressavam-se pelo trabalho e pela vida! Abandonavam os sonhos por falta de coragem para desistir do vício.

Para casa uns levavam a boa disposição exagerada, outros, era o remédio para dormir e ainda a maneira bruta de dizer ou poder espancar as mulheres, amigos ou familiares o que não tinham coragem de dizer sóbrios. A forma que encontravam para os maltratar.

Havia ocasiões que as mulheres iam buscar os maridos à taberna, para os ajudar a chegar a casa pois a bebedeira era tanta, que não tinham força para andar.

 A mulher tinha as vizinhas e familiares mas muitas vezes com medo da vergonha não desabafava, sofria sozinha. 

Maria Antonieta Matos